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Poiesis

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segunda-feira, 7 de setembro de 2015




FACEBOOK AMANHECE O DIA DOS EXCLUÍDOS DANDO PARABÉNS

Brasileiros conscientes protestam nas redes sociais sobre cumprimento do FB na linha do tempo dos usuários do 7 de setembro, data marcada por sangue e corrupção na história do país.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE LEITE DERRAMADO DE CHICO BUARQUE E A PÓS-MODERNIDADE




 José Ivo dos Santos Xavier


O presente ensaio busca fazer uma exposição (reflexão) sobre a escrita buarqueana, especialmente no seu quarto romance, intitulado Leite derramado(2009). Antes, pretendo fazendo uma pequena análise do momento sócio-histórico que permeia a memória do velho Eulálio d'Assumpção, aristocrata arruinado de Copacabana. Levando em conta o fluxo da escrita, em que seu ato ocorre ao mesmo tempo em que o velho rememora momentos de sua vida (ao mesmo tempo em que narra), pretendo evidenciar o caráter esquizofrênico do eu que narra, na busca de manter uma linearidade, uma sucessão coerente de idéias e fatos, na busca de se construir uma história. Esquizofrenia aqui se entenderá como movimento do pensamento que foge ao esquadro, que está perturbado; movimento para fora. Antes, um pouco de lucidez teórica para situar a escrita de Leite derramado como um movimento para as extremidades do texto, como quem simula o pensamento pós-modernos. 
No texto de Chico Buarque, gostaria de evidenciar como a escrita se utiliza da esquizofrenia para uma suposta reflexão sobre a memória narrada. Segundo, o Wikipedia, 

A esquizofrenia (do grego σχιζοφρενία; σχίζειν, "dividir"; e φρήν, "phren", "phrenés", no antigo grego, parte do corpo identificada por fazer a ligação entre o corpo e a alma, literalmente significa "diafragma") é um transtorno psíquico severo que se caracteriza classicamente pelos seguintes sintomas: alterações do pensamento, alucinações (visuais, cinestésicas, e sobretudo auditivas),delírios e alterações no contato com a realidade.

Eulálio d'Assumpção, aristocrata arruinado de Copacabana, na cama hospitalar da pobre enfermaria em que o internaram depois de uma fratura grave, usa-se de uma interlocutora em que o texto não nos permite identificar, mas ora se percebe que é a enfermeira, ora sua filha Eulália. Completando 100 anos, muito debilitado, o frágil ancião constrói seu monólogo dialógico em alguns capítulos de forma esquizofrênica, em extensas memórias de sua Matilde, antiga esposa para sempre amada, desaparecida de sua vida quando se achava na flor moreníssima dos seus 17 anos. Nunca ouvimos a voz do interlocutor que ouve e anota as histórias de Eulálio, mas, logo na primeira página, ele promete se casar com ela na tal fazenda da sua feliz infância. A escrita que se constrói com memórias fragmentadas, monta o romance de dentro para fora, esquizofrenicamente.
Como montar o pensamento pós-moderno para empreendermos um passeio pela memória de Eulálio, não de como ela está estruturada, mas como ela não se consegue estruturar?
Não é tarefa fácil demarcar o pensamento, o sentimento e a visão de mundo de uma época. Principalmente quando se trata de um longo período histórico. Tal empreendimento envolve o debruçar-se sobre diferentes contextos: social, econômico, político, cultural etc. No que tange à Literatura, podemos perceber que na contemporaneidade, mais especificamente no século XXI, lidar com o texto que se publica como literário exige do crítico uma maior gama de processos de inferências, na busca de uma unidade de sentido.
Poucos são os teóricos que conseguem dar conta de uma tão vasta gama de inferências, relacioná-las e extrair delas uma análise satisfatória da realidade da obra literária sem confundi-la com a obra literária que expressa uma realidade. Mesmo após passada uma época, as conclusões acerca de seu conteúdo e significado ainda se processam e reviravoltas analíticas podem ocorrer. Mas, qualquer análise que abandone a perspectiva da totalidade histórica corre o risco de cair no individualismo alienado, ainda mais se tratando de uma obra que ocorre na época vigente. E se esta época for permeada de fugas pelas extremidades, quase sem direção, o retorno à unidade se faz quase impossível, revelando o distúrbio na relação mimética que envolve o crítico, o leitor e o autor, todos na esfera da arte em busca de contentamento, emoção ou em se situar sócio-historicamente.
A modernidade, além da ruptura com o conjunto de valores e crenças da época precedente, foi o período marcado pela busca dessa totalidade, de uma essencialidade das coisas. Pautado no ideário iluminista, foi a crença na emancipação humana, na construção de um novo mundo baseada na razão, na idéia de progresso, e que norteou toda a tradição dos movimentos da luta de classes subseqüentes. Chico Buarque cita muitas vezes esta época, de forma insuficiente para confortar esta análise da modernidade, seja na relação com Matilde ou com o pai dela, político liberal.
Com os abalos sofridos no século XX, sobretudo pelas guerras, o projeto iluminista, que já vinha sendo questionado, não apenas foi desacreditado e abandonado, como foi identificado com a lógica subjacente à opressão reinante. O niilismo daí decorrente abriu caminho para uma tendência que iria colonizar as diferentes esferas da vida. Da arte à ciência, o pensamento pós-moderno passou a ocupar cada vez mais as preocupações do período que se inicia, em algum lugar, entre o final dos anos 60 e inícios dos anos 70 (Harvey, 1992).
O final dos anos 60 foi o período de contestação social em que, ainda, se pôde postular e vislumbrar uma transformação de grande alcance e profundidade. A arte e a produção cultural, que tiveram um papel ativo nos eventos deste período, não haviam sido completamente cooptadas pelo mercado, muito embora este processo já estivesse em curso, e sua efetivação, coincidido com a tendência hegemônica do pensamento pós-moderno. David Harvey menciona as conseqüências do fracasso da insurreição de 1968: 

Na filosofia, a mescla de um pragmatismo americano revivido com a onda pós-marxista e pós-estruturalista que abalou Paris depois de 1968 produziu o que Berstein (1985, 25) chama de “raiva do humanismo e do legado iluminista”. Isso desembocou numa vigorosa denúncia da razão abstrata e numa profunda aversão a todo projeto que buscasse a emancipação humana universal pela mobilização das forças da tecnologia, da ciência e da razão (Harvey, 1992. p. 46).

Como uma ressaca moral, após a embriaguês com o projeto iluminista, agora numa crise profunda, o que se segue, na marcha pós-moderna pelo mundo, é a desconfiança e oposição a qualquer pretensão de essencialidade, totalidade e grande teoria. O retraído pensamento pós-moderno, na corrente das mudanças, se volta para o que é efêmero e fragmentário, descontínuo, caótico e indeterminado. Concentra sua atenção nos grupos minoritários, na diferença e na idéia de mundos paralelos, de outros mundos. Adota o discurso da alteridade e pluralismo como contraposição legitimadora de sua própria condição alienada, fragmentada, de resignação ao mercado, e de impotência frente a qualquer perspectiva de transformação mais abrangente do mundo. 

[...] Encontramos autores Como Foucault e Lyotard atacando explicitamente qualquer noção de que possa haver uma metalinguagem, uma metanarrativa ou uma metateoria mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas ou representadas (Harvey, 1992. p. 49).

Ao se fixar em uma fragmentação seriada do presente, sem relação temporal que possa conectar os diferentes momentos da experiência vivida, a pós-modernidade[1] sofre uma perda da temporalidade e qualquer perspectiva de continuidade histórica. Vivendo num presente continuum e multifacetado, com a justaposição e a superposição de momentos presentes, a pós-modernidade flutua na superfície de um espaço-tempo comprimido.  A perda de profundidade, da capacidade enunciativa, de sentido, e a fixação no impacto instantâneo são inerentes a esta condição.
O pensamento pós-moderno é também o abandono resignado de qualquer possibilidade crítica, já que sua postura não autoriza afirmar a menor verdade acerca do mundo.  Os julgamentos críticos e estéticos tendem a se concentrar na superficialidade e na forma, não sendo possível tocar o conteúdo, que, aliás, é indiferenciado da forma, na medida em que toda idéia essencialista é rejeitada pelo pensamento pós-moderno. Por já não ter o que dizer é que a pós-modernidade trata forma e conteúdo como idênticos, e afirmações do tipo: “Forma gera conteúdo”, lhes são tão caras.
Imerso num relativismo absoluto, tal pensamento ao mesmo tempo em que não pode afirmar nada categoricamente, lança mão de todos os recursos históricos e teóricos para sua legitimidade.  Por meio da pilhagem e da combinação arbitraria dos mais diferentes elementos históricos, teóricos e culturais, monta impudicamente o mosaico de seus fundamentos sem qualquer coerência.

A política do avestruz de um pensamento reduzido e desarmado de modo tão espontâneo menospreza o fato de não ser possível fazer uma separação entre a problemática das chamadas grande teorias e grandes conceitos, e o seu objeto social real. A pretensão de querer cingir o todo é provocada sobremaneira através da realidade social. Em sua existência real, o todo negativo do capitalismo não pára de agir, simplesmente porque é ignorado, conceitualmente e porque não queremos mais olhar nesta direção: “a totalidade não os esquece”, como bem escarneceu o inglês Terry Eagleton, teórico da literatura (Kurz, 2001).

A comunicação e a linguagem são campos privilegiados para essa indeterminação, confusão e dissolução consentida do sujeito em uma impessoalidade que não se pode deixar de relacionar ao movimento cego das categorias capitalistas. Como ressalta David Harvey, citando Jameson: “A alienação do sujeito é deslocada pela fragmentação do sujeito”. Se a Literatura não é um saber, mas uma reunião deles, como mencionou em sala o professor Cid Ottony, citando algum semioticista, é posssível que a literatura resista ao vazio projetado da pós-modernidade sobre o pensamento por meio da unidade de saberes. A meu ver, Leite derramado segue o caminho da regra ao propor constituir-se uma obra literária por meio de fragmentos mnemônicos, que muitas vezes se repetem ao longo da história, afirmando o movimento para as extremidades, para fora do texto, ao vazio. Repete-se por estilo ou por não se conseguir criar um novo?
A relação entre significado e significante assume uma grande flexibilidade numa interpretação ao estilo pós-moderno. No texto de Buarque, a conexão fragmentada e os entrelaçamentos memoriáveis assumem uma importância tal, que se torna mais relevante que o texto em si, assumindo vida própria. Para os pós-modernos, se o sentido do que queremos dizer, necessariamente nos escapa, não vale a pena deter-se no significado, voltando-se ao significante. E nesse movimento, se vai do conteúdo à forma, da essência à aparência, do fundo à superfície, da densidade moderna ao vazio pós-moderno.
Esta ênfase na relação entre as partes, em detrimento do texto em si, implica na redução do papel autoral, numa maior democracia e participação dos consumidores culturais. Este passa a assumir um papel destacado na produção de sentido da obra, que passou a ser a chamada de “obra aberta”. O que antes se centrava na obra, passa ao “processo”, enfatiza a “participação”, manifesta-se no reppening e consolida-se na performance. Mas a democracia participativa, aqui celebrada, resvala para a perda de comunicação e cai na futilidade do mercado de massa. David Harvey toca na ferida pós-moderna ao formular a seguinte questão:

Mas se, como insistem os pós-modernistas, não podemos aspirar a nenhuma representação unificada do mundo, nem retratá-la com uma totalidade cheia de conexões e diferenciações, em vez de fragmentos em perpétua mudança, como poderíamos aspirar a agir coerentemente diante do mundo? (Harvey, 1992 p. 55). 

Para concluir, observar a escrita buarqueana em Leite derramado como algo que nega a possibilidade de lembrar, de memorar, memorando fragmentos em um tempo-presente já sem o presente-tempo é afirmar que o sentido se perdeu na pós-modernidade enquanto diferença. A memória se coloca como representação de uma história vivida, mas então abstratamente. Chico é um escritor que se utiliza do leitor para construir um sentido para sua obra. Em leite derramado, apesar de uma narrativa cansativa, com algumas sacadas engraçadas, o autor apela para que o leitor se coloque como interlocutor, mesmo que o sentido, a sucessão do que é contado fuja; o leitor é quem toma nota das memórias do velho Eulálio dÁssumpção.uma presente jefragmentos de exa buarqueana como algo que nega a possibilidade de lembrar, de memorar, memorando fragmentos de

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Referências bibliográficas

BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo. Companhia das Letras, 2009.
HARVEY, David. A Condição Pós-ModernaUma Pesquisa Sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo, Ed. Loyola: 1992.
KURZ, Robert. As leituras de Marx no século XXI. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz97.htm>. Acesso em: 22 mai. 2010.

JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São
Paulo, Ed. Ática: 1997.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Ed. Contraponto: 1998.

HENRIQUES, Júlio (Org.) Internacional SituacionistaAntologia. Lisboa: Edições Antígona: 1997.
VANEIGEM, Raoul. A Arte de Viver para as Novas Gerações. São Paulo, Ed. Conrad: 2002.
JAPPE, Anselm, Guy Debord. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes: 1999.

             








[1] Pós-modernidade aqui não deve ser compreendida estritamente como período histórico ou tendência cultural, mas como condição sócio-histórica, e pós-moderno, quem defende ou se alinha a esta condição, sendo até aqueles que combatem a fragmentação do pensamento.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Unidade e Fragmentação Por cada uma

            Por: Ivo Xavier


           Sexta-feira; esperava ansioso - mesmo longe de casa - um punhado de versos, de cinco mulheres. Mas eles não chegaram e o fim de semana acabou sendo poeticamente absurdo, entre praia e legislação.
           
            Segunda-feira, consulto o monitoramento dos correios. Por onde estará Por cada uma? Entre Ponta Negra/Natal- RN e Antônio Bezerra/Fortaleza-CE, percursos poéticos. Finalmente o livro faz seu percurso – talvez o único inútil, pois envelopado – até seu destino.

          Chego a casa durante o crepúsculo; não pergunto sobre a encomenda e, de repente, deparo-me com ele sobre os demais livros que me acompanham habitualmente. Perto da encomenda, Mário Quintana, Drummond e Oswald de Andrade já tinham dado boas vindas às meninas e seus versos, como cães que farejam o cio. Vejo a remetente e confirmo a chegada da boa nova. Procuro sentir cheiro adverso como quem procura na lembrança o perfume moreno de encontros desencontrados na memória. Poderia ter pedido uma gota de perfume, mas minha veia poética não está tão atenta assim.
          
          Rapidamente, desembrulho-o. A obra está envolta de um papel alvo como que um manto que protege de qualquer agente nocivo. Antes de sacar o papel branco, a cor do livro transpassa com a força que o vermelho do amor, da guerra, do crepúsculo e da aurora significa. Tenho um presságio diferente da Jandaia de Iracema: hoje vou dormir com cinco mulheres. Hei de satisfazer todas, Por cada uma (da editora UNA), mergulhando em seus versos.
          
        A capa, obra do artista renascentista alemão de Nuremberg Albrecht Dürer, mostra o banho das mulheres (The woman´s bath). Depois de obrigado pela igreja a guardar o corpo pelo pensamento medievo dominante, o homem renascentista resgata a cultura helênica e romana, principalmente em suas obras, dando ao corpo um lugar central na expressão. Na obra de capa, as mulheres grávidas da renascença sugeriram-me metáfora do parto de versos Por cada uma.
  
          Não li as orelhas de início e fui ao encontro de Adélia, Iara, Isabella, Letícia e Marina. Esta, tive a honra de conhecer pelo meio do caminho depois de driblar uma pedra. A dedicatória me chamou atenção pelo seu duplo:

           Para Ivo,
                      A posia
                            resPIRA...
                                  Com Carinho,
                                                  Marina
                                                    (arabesco)
                                                                  Jan/2012

          E fui pirar na res poética que acabara de chegar-me. Inspirado pelas cinco tecelãs, fui tecendo os mosaico de imagens e versos que ora une, ora nos escapa pela riqueza de significados. A possibilidade de perceber mais possibilidade acabou sendo uma busca pueril e alegre pelo universo feminino que ora me estava entregue.

          Parei um pouco e pensei: “Quero comentar o livro. Vou escrever um ensaio”. Pouco escrevi ensaios durante o período acadêmico. Os poucos que tentei ora versavam sobre romances, ora sobre teoria da literatura. Quanto à poesia, sempre me foi árduo tentar esquadrinhar qualquer poética em determinações teóricas ou semânticas, mesmo às mais abertas.

       Aristóteles, filósofo do período decadente da Grécia antiga, também cogitou a dificuldade de (de)nominar a arte poética ou da palavra.

  “A arte que se utiliza apenas de palavras, sem ritmo ou metrificadas, estas seja com variedades de metros combinados, seja usando uma só espécie de metro, até hoje não recebeu um nome.” (Aristóteles, 1997)

            E isso se confirma assim que me encontro com Adélia, que acaba por partilhar da profundidade que é a arte de sentir em versos: “Não queria ser assim / ter esse legado de / labirintos profundos”. Esse é o convite mais ilustre da poeta: vasculhar a profundeza, o íntimo humano, sem se anula involuntariamente, sem coisificar a visão: “as coisas / muito claras / ´nos´ noturnem” 1 (BARROS, ...).

         A teoria literária ou teoria da literatura buscou se livrar das análises sob influência do biográfismo acerca dos textos literários quando descobriu que o texto é constructo de seu tempo e o autor o porta-voz deste percurso histórico, ainda no final do século XIX. Sinto-me privilegiado, então, por desconhecer as poetas, salvo a Marina Morena. Mesmo assim, nunca conseguiu-se fugir da autoria a teoria, talvez por imposição da ciência e do seu olhar frio que sempre acaba captando, apenas o automatismo do sujeito.
    
          Em Adélia, a vontade de viver é intensa, vontade de querer "só mais quatro mil anos", não só para ela, mas para com e no outro, para duas embora muitas em inúmeras fases das luas. “Sim, isso é a vida.”, mesmo procurando o que dizer “em casas de palha em meio a tempestades”. Tal vontade não permite receios, principalmente no amor. Do mundo e de Dionísio são suas incertezas para além de si, para além de sua geração. Uma dúvida fértil, tal como terra molhada pela chuva. Ao sol, seca. Assim, Adélia quer deixar pistas do seu rastro, quando das suas “letras / que insistem / em ser palavras”. “Nos desejos e realidade / tenta fugir / Despercebida”.
    
          Mas Adélia não pode fugir, e não quer fugir, e precisa fugir em pedaços, em fragmentos que a faz, “por simples brincadeira / feliz e inteira”, unidade. Inteira e só. Como eu queria pelo menos tentar “sair / em lapsos na madrugada”. Adélia, eu também não gozo sem mar!
    
         Iara – parece-me – já transcendia antes dos trinta. Agora a poesia queima-lhe naturalmente (opinião de leitor). O sonho verdejante das operárias não é o mesmo sonho operário. Até o vermelho das operárias não é o vermelho operário de outrora. Iara sabe o segredo no fundo do formigueiro; Iara é uma flor!
        
       Iara, como o próprio nome sugere, é natureza. Pelo grande poder que sua observação tem de transformar o alvo de sua visão em versos, Iara me lembra Arquimedes: “Dê-me um ponto de apoio, e moverei o mundo”. E assim, move-se noturna: “pedras sonoras me orientam aos céus”.
    
         “Iara é a sereia encantada de nossos índios, aquela que em noites de luar, vive a cantar nas margens dos rios e onde mora”2. Em Lúdica, temos nossa Iara poeta que “escreve... alegre e descansa sobre o verbo e as flores”. O banho de Iara não é aquele de Dürer... é um banho quente, de convulsar “água interior”... autovidração, salvação do abismo. E por aí Iara se transmuta, entre cigarra e formiga que formiga na poesia “uma flor no lugar do coração”.
    
          Em Isabella, descobri um rio de significação cujas margens são desfeitas e levadas pela correnteza de sua poética: emancipação da forma.
         
   Quando queimei as pontes,
   O sagrado se espalhou como pólem.   

           Assim como tudo que era sólido se desmancha no ar, a poeta, “altiva, nada quis reter".
  
          No poema de abertura, Isabella sugere o tênue laço que há entre o homem e o sagrado. A sugestão é que não há criatura nesta relação, mas criadores; um do outro. A palavra, como portadora de “mil faces secretas sobre a face neutra”, permite re(a)ver o contato com o sagrado, mesmo em cólera: “ Deus, por onde me espia / Para eu ultrapassar essa fresta?”.
   
        No ínterim da leitura de sua poética, percebo que Isabella arrasta (convida) toda a margem(forma) a descer o rio(poesia), permitindo ao leitor (se) refazer (n)a leitura: “As palavras se desviam em hiatos”. O obscuro, aqui, se esconde sob o símbolo e a poeta, no quarto que se expande, em vontades secretas; o abismo é uma proteção. Proteção criada pelo sujeito ou pelo eu lírico “de mãos ásperas que colhe dolorosas astúcias de salvação”. Isabella sabe ouvir, “o inefável perpetuando laços / É a própria fresta / Que digo não ver.”. O inefável é ouvir-se.
    
        Letícia não se rende à imposição da imagem e sabe transformá-la em imaginação. Que olhar é este que faz a imagem desfocar sua finalidade de ser indesfocável? Que divisão de vida é esta que se junta nas separações (e arremata o poema)? A poesia, como a loucura, é uma tentativa de reconstrução do que se perdeu. Não que se perdeu por aí, mas se perdeu no aparato sensorial dos sentidos que nem tudo sente. Vejo na seção da vida pessoas que são muitas, mas apenas pessoas, pois “Toda rejeição é dúvida confirmada”.
      
         Na Letícia-mulher não sei como é que é! Mas na Letícia poeta “as idéias se aperfeiçoam. O sentido das palavras também. ...serve-se das suas expressões...”.
        
       Ao passar dois dias da escrita do parágrafo anterior, sinto que não dediquei o suficiente a poética de Torres. Depois deste intervalo, volto a sua poesia inicial e na releitura mais atenta – como quem busca sentir sutilezas metafísicas – vejo-me comportado na seção de sua vida dividida. Essa será o reflexo dos meus óculos desconhecidos “como se fosse primeira e única conversa séria”?
    
        Indo assim como vim, vindo assim como nada, mesmo sem tristeza afiada, mas com a percepção cortada “com os cactos que não acontecem / fazendo dos pedaços, palavras”, separo-me de Letícia: “A vida se junta nas separações”.
    
         Marina Rabelo, cujo sentimento do mundo perpassa pelo sentimento da palavra, possui uma hermenêutica encantatória tal canto da Iara. Em seus dois poemas iniciais, o convite para experimentar tal sentimento está ao alcance do leitor mais atento ao infinito de perspectiva da palavra.
    
         Remontando ao conceito clássico de poiesis (ποιέω), hoje atualizado pelos biólogos da década de 70 como autopoiesis (a capacidade do seres vivos de produzirem a si próprios), Marina imprime em seu verbo o corpo, o sentimento da palavra, distanciando seu “discurso” de qualquer possibilidade mecânica do verso3 .
  
          Tal inferência fica mais clara no poema “a vida secreta das palavras”. Quando o sentimento do mundo, perpassando pelo sentimento da palavra, toca-lhe o lábio, o fogo purifica. “Sob o asfalto, a praia". Acabo de engolir os segredos da onda gigante para transformá-lo em gás metano4 .
  
         A senhorita Rabelo percebe a sílaba das palavras como possibilidade de sentido, mesmo quando nu vens invade minha fortaleza de sol. Neste poema, tendo como epígrafe o querido Múcio Góes, poeta cuja poética transborda de quintessência, o sentimento da palavra vem e impõe-se, “desenhando nuvens” no céu da poesia. 

         As nuvens da poeta não são as nuvens da realidade. As nuvens da poeta sombreiam o céu. Em Marina, “A poesia aflige” e encarna; porém, em interminável contrassenso, “gosta de colecionar silêncios / eles sempre tem algo a dizer”.
 
          E aqui, Por cada uma cria-se o todo, como arabesco em voluta, em busca de contentamento.

Notas
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1 - Além de citar, acabo parafraseando o poema de Manuel de Barros.

2 - Acessado em 31/01/2012 em http://odemutaloia.blogspot.com/2010/04/ogum-iara.html

3 - Tal característica mecânica é facilmente encontrada na herança moderna das correntes literárias do período renascentista até o pós-fordismo (organização social básica mecânica), com exceção do Barroco e de algumas correntes ditas pré modernas. Por muito tempo, a poética esteve, de certa forma, escrava da forma. 

4 - Aqui, procuro inverter o sentimento do mundo da poeta: da angústia assimilada à comicidade sem finalidade. Tal estratégia foi inicialmente poetizada por Conde de Lautréamon, contemporâneo de Vitor Hugo, porém detentor de uma estética muito a frente do seu tempo. O mesmo recurso foi aproveitado pelos letristas como desvio de uma situação opressiva da forma, conhecido e deteriorado mais tarde pela lingüística de texto e pelo mercado da publicidade (détournement)

Bibliografia
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ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO. A poética clássica. São Paulo. Cultrix, 1990.

CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literário. Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/mimesis.htm

LOPES, Rui.  A MIMESIS NO SÉCULO XX. Disponível em http://filosofiadaarte.no.sapo.pt/mimesis.html

PORTELLA, Eduardo.  Fundamento da investigação literária. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.

SABOIA, Alice Maria Teixeira de. “A representação da representação”. Disponível em http://www.ufmt.br/revista/arquivo/rev11/representacoes.html

SODRÉ, Nélson Werneck. História da Literatura Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1982.

domingo, 14 de agosto de 2011

A ideia de mimese (e/ou representação) no conto “Retrato de cavalo” de Guimarães Rosa

            Esse trabalho pretende fazer (re)considerações acerca da mimese[1] no conto “Retrato de cavalo”, de Guimarães Rosa do seu último livro de contos, Tutameia (1967). O objetivo é trazer à tona a relação mimética postulada por Aristóteles que se confunde com o conceito esclarecido de representação no período moderno.  A partir da compreensão de representação como fragmento da relação com a realidade (mimese), pretendemos analisar como o autor/narrador do texto faz a representação do cavalo do Bio e do retrato que tiraram dele. Tentamos estabelecer uma relação entre o retrato do cavalo e o próprio ato de escrever. 

 Segundo Lopes (2006), a mimesis que até o século XX é entendida apenas como representação não será compreendida então como cópia pura e simples da vida, mas o artista aparece como força criadora do trabalho de arte. Lopes (2006) considera que

a mimesis artística e a sua relação com a natureza na qual aquela não é tomada somente como uma simples imitação do aspecto fenomenal dos seres, essa outra forma estabelece uma equivalência de identidades entre a capacidade geradora da natureza e a energia inventiva do artista.

O retrato não seria apenas a representação (im)perfeita do cavalo, mas traria, sob a o tecido textual, uma tensão que dá pista da recriação propulsora da linguagem: o poder do artista de (re)criar e (in)dispor representações (e representação da representação). É nessa perspectiva de inverter a verdade pelo movimento do falso que Guimarães Rosa expõe a vitalidade da Poiesis.

            O processo de permanente re-criação da linguagem em Rosa evidencia o caráter eterno do signo. O não dizer, dizendo; não mostrar, mostrando; a epígrafe que inicia o texto, na certeza que ele recapitulará, demonstra esta virtude da linguagem. A relação entre o real e o falso é construída pela subversão da linguagem, pela enunciação criativa, pela possibilidade de dizer o inefável na perspectiva de fazer o impossível.

            A mimese, representada pela tragédia (certeza da morte) e pela comédia (retrato de cavalo), confunde o narrador com o ponto de vista de Bio. 

Segundo Carlos Ceia (2010), mimese,

Do gr. mímesis, “imitação” (imitatio, em latim), designa a acção ou faculdade de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, O fenómeno não é um exclusivo do processo artístico, pois toda actividade humana inclui procedimentos miméticos como a dança, a aprendizagem de línguas, os rituais religiosos, a prática desportiva, o domínio das novas tecnologias, etc.

            O texto expõe o estranhamento de Bio com o retrato e os sentimentos que este estranhamento causa: ódio, desconfiança, etc. Se a mimese é a cópia fiel da natureza, o retrato retrata isso muito bem. Percebe-se que a relação mimética, no plano do texto, o retrato, como elemento principal da narrativa, constitui a tensão, ou seja, em volta do retrato, imanente ao retrato, vem todo o conflito e uma reflexão sobre tutameia. Esta relação potencializada pelo viés da linguagem e pela roupagem mimética aparece disposto como pano de fundo do texto na condição de tutameia.

Guimarães recupera a importância (sem muita importância aparente) da realidade exterior como referente para a tessitura do signo que se revela pela linguagem. Quando Bio tenta compreender, aliás, tenta estabelecer uma relação com o retrato, ele busca no retrato uma compreensão para sua relação com o cavalo. É aqui que o diálogo entre o real e o falso ganha sua concretude. “Uma outra sombra, em falsas claridades?” (ROSA, 1976, p. 131)[2] nos remete à ideia de que a relação mediada entre o retrato e a realidade que ele representa constitui-se como cópia, ou seja, numa relação realmente invertida, o verdadeiro é o movimento do falso: “ ...mas que, reproduzido destarte, fornecia visão vã, virava o trem alheio, difugido” (p. 130).

A foto faz mal ao cavalo e, mais ainda, faz mal ao próprio Bio: “Encismava-se: feito alguma coisa houvessem tomado ao animal, subtraindo-lhe uma virtude; o que trazia dano, pior que mau-olhado” (p. 130). O retrato é algo como a negação do cavalo, o que lhe tira uma virtude, o que prenuncia a morte, afinal. Bio vê-se diante de um dilema que desafia sua única vaidade: a posse do cavalo. E nesse dilema já não sabe qual é mais “vistoso” (p. 130) se o quadro ou seu cavalo.

O cavalo de Bio era tão estimado pelo dono que não era utilizado nem como montaria: “Ia a pé; para giro vulgar ou de mister, não o selava...” (p. 130). Aqui, o cavalo assume uma importância toda especial para seu dono, pois a relação entre eles não era apenas a de um homem e seu cavalo. Parece ser muito mais que isso. O cavalo não seria para o usufruto, mas para “usuflor” (p. 131). E esse cavalo era seu, o retrato não, embora lá estivesse uma representação quase que maldita do seu “cujudo” (p.130). Além dessa angústia, seu patrão, o Iô Wi, provocava-o dizendo que o cavalo do retrato (representação) era mais belo do que o cavalo real. Outra vez se coloca, aqui, a separação entre arte e vida, a obra de arte (retrato) é mais belo do que o próprio cavalo.

Para confrontar sua angústia de não possuir o cavalo do retrato, Bio transforma a sua relação com o cavalo: “Tinha era de nele montar, pelo comum preceito, uso, sem escrúpulo nem o remorso. Montava-o – e dele só assim se posseava.” (p. 131, grifos nossos). A relação passa de “usuflor” para usufruto, pois, apenas assim, Bio poderá sentir a posse de seu cavalo novamente.

Depois de usufruir de seu cavalo em um passeio, Bio resolve ir ao Iô Wi para, enfim, resolver logo aquele problema: “Desdenhava falsejos e retratos. Agouros! devia abolir aquele, destruído em os setecentos pedaços. Só depois sossegasse.” (p. 132). Bio sentia que aquele retrato – que ao tentar representar seu cavalo de forma perfeita, distanciava-se da vida (cavalo) – prenunciava alguma tragédia, era um “agouro”, por isso tinha que destruí-lo. Porém, ao chegar à casa do Iô Wi, encontra-o triste. A moça “desdeixara-o” (p. 132). Para Bio, ela não poderia ter fugido assim, de todo. Alguma coisa ficara, mesmo que na representação da moça do retrato – ora, não era o retrato (arte) a tentativa de cópia perfeita da moça (vida)?

Ao fim, o agouro começa a se realizar, o cavalo de Bio encontra-se doente. Desesperadamente, Bio tenta reanimá-lo e chega a uma conclusão que, talvez, seja a chave para a compreensão da ideia de representação, segundo Guimarães Rosa: “Sofrimento e sede... Isto se grava em retratos?” (p. 133). E o cavalo-real ia se esvaindo, “... mirava-o, agradecido, nos olhos as amizades da noite.” (p. 133); “Cavalo infrene, que corria, como uma cachoeira. Não estava ali mais.” (p. 133). O retrato continuava, aquele cavalo do retrato não morrera, permanecera vivo, mas Bio recusou o retrato. A moça-real e o cavalo-real, de certa forma, morreram. A representação dos dois, não: “Apesar bem de belo, perfeito em forma de semelhanças, cavalo tão cidadão, aquilo não podia satisfazer o espírito, como a riqueza esfria amores, permanecido em estado de bicho.” (p.133). Já não valia mais ter junto de si aquele retrato, pois eles (cavalo e moça) já não tinham correspondência no mundo-real. Dissociaram-se, afinal, da vida.

            E a “epígrafe” final que, inclusive, lança luz, ainda, sobre a potência da linguagem mimética percebida no texto:

Era verdade de-noite,
Era verdade de-dia.
Mentira, porque eu sofria.
RECAPÍTULO. (p. 133)

Segundo Sodré (1982), “a originalidade que define uma literatura como o ‘instrumento de expressão, que é seu veículo’, não surge por acaso, senão no período próprio, quando as condições sociais permitem”. A compreensão de mimese como imitação tal qual da natureza não se restringe apenas ao fazer artístico, mas repercute também na relação social consolidada. A imitatio é uma aproximação que a arte faz com a vida, bem como a compreensão que – no caso a literatura – é feita de uma época. Com a modernidade, o advento das especialidades, percebe-se um distanciamento entre artista e realidade. O dito pelo não dito se encontra escondido no percurso entre imanência e transcendência. Neste ínterim, encontra-se (recupera-se) o vínculo com o que foi perdido na insistente estrutura do homem por uma verdade metafísica: o que não cabe à literatura empreender, nem a literariedade evidenciar. A gênese da literatura sempre foi a relação livre com o imprevisto, com o quiprocó, fazendo de tutameia, coisas sublimes.

Notas:


[1] 1 Em alguns momentos, mimese e representação semantizam-se como concepções separadas, ou seja, recategorizadas sob a luz do esclarecimento da história (levando em conta que tanto mimese quanto representação foram segmentadas com a crise da  modernidade de uma compreensão de unidade). Conceber mimese como a imitação fiel da natureza é – e no fazer artístico isso é secundário – compreender representação como um constructo do pensamento moderno, ou seja, uma atualização do fazer artístico em que a arte se torna uma esfera autônoma na sociedade, possibilitando criar o inimaginável, ou seja, colocando o artista em primeiro plano, desgarrado ontologicamente da sociedade e do processo histórico (Grifos nossos).                                                                      

[2]              A partir de agora as referências do livro Tutameia serão indicadas apenas com o número da página entre parênteses.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO. A poética clássica. São Paulo. Cultrix, 1990.

BYLAARDT, Cid Ottoni. “Conversando aos infinitosum retrato de cavalo”. Disponível em http://cidobyl.blogspot.com/2009/08/conversando-aos-infinitos-um-retrato-de.html

CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literário. Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/mimesis.htm

LOPES, Rui.  A MIMESIS NO SÉCULO XX. Disponível em http://filosofiadaarte.no.sapo.pt/mimesis.html

PORTELLA, Eduardo.  Fundamento da investigação literária. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.

ROSA, Guimarães. Tutameia. 8º. Ed. Rio de janeiro. Nova Fronteira., 2001.

SABOIA, Alice Maria Teixeira de. “A representação da representação”. Disponível em http://www.ufmt.br/revista/arquivo/rev11/representacoes.html

SODRÉ, Nélson Werneck. História da Literatura Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1982.