José Ivo dos Santos Xavier
O
presente ensaio busca fazer uma exposição (reflexão) sobre a escrita
buarqueana, especialmente no seu quarto romance, intitulado Leite derramado(2009).
Antes, pretendo fazendo uma pequena análise do momento sócio-histórico que
permeia a memória do velho Eulálio d'Assumpção, aristocrata arruinado de Copacabana. Levando
em conta o fluxo da escrita, em que seu ato ocorre ao mesmo tempo em que o
velho rememora momentos de sua vida (ao mesmo tempo em que narra), pretendo
evidenciar o caráter esquizofrênico do eu que narra, na busca de manter uma
linearidade, uma sucessão coerente de idéias e fatos, na busca de se construir
uma história. Esquizofrenia aqui se entenderá como movimento do pensamento que
foge ao esquadro, que está perturbado; movimento para fora. Antes, um pouco de
lucidez teórica para situar a escrita de Leite derramado como um movimento para
as extremidades do texto, como quem simula o pensamento pós-modernos.
No
texto de Chico Buarque, gostaria de evidenciar como a escrita se utiliza da
esquizofrenia para uma suposta reflexão sobre a memória narrada. Segundo, o
Wikipedia,
A esquizofrenia (do grego σχιζοφρενία; σχίζειν,
"dividir"; e φρήν, "phren", "phrenés", no antigo grego, parte do corpo
identificada por fazer a ligação entre o corpo e a alma, literalmente significa
"diafragma") é um transtorno psíquico severo que se caracteriza
classicamente pelos seguintes sintomas: alterações do
pensamento, alucinações (visuais, cinestésicas, e
sobretudo auditivas),delírios e alterações no contato com a realidade.
Eulálio d'Assumpção,
aristocrata arruinado de Copacabana, na cama hospitalar da pobre enfermaria em
que o internaram depois de uma fratura grave, usa-se de uma interlocutora em que
o texto não nos permite identificar, mas ora se percebe que é a enfermeira, ora
sua filha Eulália. Completando 100 anos, muito debilitado, o frágil ancião
constrói seu monólogo dialógico em alguns capítulos de forma esquizofrênica, em
extensas memórias de sua Matilde, antiga esposa para sempre amada, desaparecida
de sua vida quando se achava na flor moreníssima dos seus 17 anos. Nunca
ouvimos a voz do interlocutor que ouve e anota as histórias de Eulálio, mas,
logo na primeira página, ele promete se casar com ela na tal fazenda da sua
feliz infância. A escrita que se constrói com memórias fragmentadas, monta o
romance de dentro para fora, esquizofrenicamente.
Como
montar o pensamento pós-moderno para empreendermos um passeio pela memória de
Eulálio, não de como ela está estruturada, mas como ela não se consegue estruturar?
Não
é tarefa fácil demarcar o pensamento, o sentimento e a visão de mundo de uma
época. Principalmente quando se trata de um longo período histórico. Tal
empreendimento envolve o debruçar-se sobre diferentes contextos: social,
econômico, político, cultural etc. No que tange à Literatura, podemos perceber
que na contemporaneidade, mais especificamente no século XXI, lidar com o texto
que se publica como literário exige do crítico uma maior gama de processos de
inferências, na busca de uma unidade de sentido.
Poucos
são os teóricos que conseguem dar conta de uma tão vasta gama de inferências,
relacioná-las e extrair delas uma análise satisfatória da realidade da obra
literária sem confundi-la com a obra literária que expressa uma realidade.
Mesmo após passada uma época, as conclusões acerca de seu conteúdo e
significado ainda se processam e reviravoltas analíticas podem ocorrer. Mas,
qualquer análise que abandone a perspectiva da totalidade histórica corre o
risco de cair no individualismo alienado, ainda mais se tratando de uma obra
que ocorre na época vigente. E se esta época for permeada de fugas pelas
extremidades, quase sem direção, o retorno à unidade se faz quase impossível,
revelando o distúrbio na relação mimética que envolve o crítico, o leitor e o
autor, todos na esfera da arte em busca de contentamento, emoção ou em se
situar sócio-historicamente.
A
modernidade, além da ruptura com o conjunto de valores e crenças da época
precedente, foi o período marcado pela busca dessa totalidade, de uma
essencialidade das coisas. Pautado no ideário iluminista, foi a crença na
emancipação humana, na construção de um novo mundo baseada na razão, na idéia
de progresso, e que norteou toda a tradição dos movimentos da luta de classes
subseqüentes. Chico Buarque cita muitas vezes esta época, de forma insuficiente
para confortar esta análise da modernidade, seja na relação com Matilde ou com
o pai dela, político liberal.
Com
os abalos sofridos no século XX, sobretudo pelas guerras, o projeto iluminista,
que já vinha sendo questionado, não apenas foi desacreditado e abandonado, como
foi identificado com a lógica subjacente à opressão reinante. O niilismo daí
decorrente abriu caminho para uma tendência que iria colonizar as diferentes
esferas da vida. Da arte à ciência, o pensamento pós-moderno passou a ocupar
cada vez mais as preocupações do período que se inicia, em algum lugar, entre o
final dos anos 60 e inícios dos anos 70 (Harvey, 1992).
O
final dos anos 60 foi o período de contestação social em que, ainda, se pôde
postular e vislumbrar uma transformação de grande alcance e profundidade. A
arte e a produção cultural, que tiveram um papel ativo nos eventos deste
período, não haviam sido completamente cooptadas pelo mercado, muito embora
este processo já estivesse em curso, e sua efetivação, coincidido com a
tendência hegemônica do pensamento pós-moderno. David Harvey menciona as
conseqüências do fracasso da insurreição de 1968:
Na
filosofia, a mescla de um pragmatismo americano revivido com a onda pós-marxista
e pós-estruturalista que abalou Paris depois de 1968 produziu o que Berstein
(1985, 25) chama de “raiva do humanismo e do legado iluminista”. Isso
desembocou numa vigorosa denúncia da razão abstrata e numa profunda aversão a
todo projeto que buscasse a emancipação humana universal pela mobilização das
forças da tecnologia, da ciência e da razão (Harvey, 1992. p. 46).
Como
uma ressaca moral, após a embriaguês com o projeto iluminista, agora numa crise
profunda, o que se segue, na marcha pós-moderna pelo mundo, é a desconfiança e
oposição a qualquer pretensão de essencialidade, totalidade e grande teoria. O
retraído pensamento pós-moderno, na corrente das mudanças, se volta para o que
é efêmero e fragmentário, descontínuo, caótico e indeterminado. Concentra sua
atenção nos grupos minoritários, na diferença e na idéia de mundos paralelos,
de outros mundos. Adota o discurso da alteridade e pluralismo como
contraposição legitimadora de sua própria condição alienada, fragmentada, de
resignação ao mercado, e de impotência frente a qualquer perspectiva de
transformação mais abrangente do mundo.
[...]
Encontramos autores Como Foucault e Lyotard atacando explicitamente qualquer
noção de que possa haver uma metalinguagem, uma metanarrativa ou uma metateoria
mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas ou representadas (Harvey,
1992. p. 49).
Ao
se fixar em uma fragmentação seriada do presente, sem relação temporal que
possa conectar os diferentes momentos da experiência vivida, a pós-modernidade[1]
sofre uma perda da temporalidade e qualquer perspectiva de continuidade
histórica. Vivendo num presente continuum
e multifacetado, com a justaposição e a superposição de momentos presentes, a
pós-modernidade flutua na superfície de um espaço-tempo comprimido. A perda de profundidade, da capacidade
enunciativa, de sentido, e a fixação no impacto instantâneo são inerentes a
esta condição.
O
pensamento pós-moderno é também o abandono resignado de qualquer possibilidade
crítica, já que sua postura não autoriza afirmar a menor verdade acerca do
mundo. Os julgamentos críticos e
estéticos tendem a se concentrar na superficialidade e na forma, não sendo
possível tocar o conteúdo, que, aliás, é indiferenciado da forma, na medida em
que toda idéia essencialista é rejeitada pelo pensamento pós-moderno. Por já
não ter o que dizer é que a pós-modernidade trata forma e conteúdo como
idênticos, e afirmações do tipo: “Forma gera conteúdo”, lhes são tão caras.
Imerso
num relativismo absoluto, tal pensamento ao mesmo tempo em que não pode afirmar
nada categoricamente, lança mão de todos os recursos históricos e teóricos para
sua legitimidade. Por meio da pilhagem e
da combinação arbitraria dos mais diferentes elementos históricos, teóricos e
culturais, monta impudicamente o mosaico de seus fundamentos sem qualquer
coerência.
A
política do avestruz de um pensamento reduzido e desarmado de modo tão
espontâneo menospreza o fato de não ser possível fazer uma separação entre a
problemática das chamadas grande teorias e grandes conceitos, e o seu objeto
social real. A pretensão de querer cingir o todo é provocada sobremaneira
através da realidade social. Em sua existência real, o todo negativo do
capitalismo não pára de agir, simplesmente porque é ignorado, conceitualmente e
porque não queremos mais olhar nesta direção: “a totalidade não os esquece”,
como bem escarneceu o inglês Terry Eagleton, teórico da literatura (Kurz, 2001).
A
comunicação e a linguagem são campos privilegiados para essa indeterminação,
confusão e dissolução consentida do sujeito em uma impessoalidade que não se
pode deixar de relacionar ao movimento cego das categorias capitalistas. Como
ressalta David Harvey, citando Jameson: “A alienação do sujeito é deslocada
pela fragmentação do sujeito”. Se a Literatura não é um saber, mas uma reunião
deles, como mencionou em sala o professor Cid Ottony, citando algum
semioticista, é posssível que a literatura resista ao vazio projetado da
pós-modernidade sobre o pensamento por meio da unidade de saberes. A meu ver,
Leite derramado segue o caminho da regra ao propor constituir-se uma obra
literária por meio de fragmentos mnemônicos, que muitas vezes se repetem ao
longo da história, afirmando o movimento para as extremidades, para fora do
texto, ao vazio. Repete-se por estilo ou por não se conseguir criar um novo?
A
relação entre significado e significante assume uma grande flexibilidade numa
interpretação ao estilo pós-moderno. No texto de Buarque, a conexão fragmentada
e os entrelaçamentos memoriáveis assumem uma importância tal, que se torna mais
relevante que o texto em si, assumindo vida própria. Para os pós-modernos, se o
sentido do que queremos dizer, necessariamente nos escapa, não vale a pena
deter-se no significado, voltando-se ao significante. E nesse movimento, se vai
do conteúdo à forma, da essência à aparência, do fundo à superfície, da
densidade moderna ao vazio pós-moderno.
Esta
ênfase na relação entre as partes, em detrimento do texto em si, implica na
redução do papel autoral, numa maior democracia e participação dos consumidores
culturais. Este passa a assumir um papel destacado na produção de sentido da
obra, que passou a ser a chamada de “obra aberta”. O que antes se centrava na
obra, passa ao “processo”, enfatiza a “participação”, manifesta-se no reppening e consolida-se na performance. Mas a democracia
participativa, aqui celebrada, resvala para a perda de comunicação e cai na
futilidade do mercado de massa. David Harvey toca na ferida pós-moderna ao
formular a seguinte questão:
Mas
se, como insistem os pós-modernistas, não podemos aspirar a nenhuma
representação unificada do mundo, nem retratá-la com uma totalidade cheia de
conexões e diferenciações, em vez de fragmentos em perpétua mudança, como
poderíamos aspirar a agir coerentemente diante do mundo? (Harvey, 1992 p. 55).
Para
concluir, observar a escrita buarqueana em Leite derramado como algo que nega a
possibilidade de lembrar, de memorar, memorando fragmentos em um tempo-presente
já sem o presente-tempo é afirmar que o sentido se perdeu na pós-modernidade
enquanto diferença. A memória se coloca como representação de uma história
vivida, mas então abstratamente. Chico é um escritor que se utiliza do leitor
para construir um sentido para sua obra. Em leite derramado, apesar de uma
narrativa cansativa, com algumas sacadas engraçadas, o autor apela para que o
leitor se coloque como interlocutor, mesmo que o sentido, a sucessão do que é
contado fuja; o leitor é quem toma nota das memórias do velho Eulálio
dÁssumpção.
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Referências
bibliográficas
BUARQUE,
Chico. Leite derramado. São Paulo.
Companhia das Letras, 2009.
HARVEY, David. A
Condição Pós-Moderna – Uma Pesquisa Sobre as Origens da Mudança Cultural.
São Paulo, Ed. Loyola: 1992.
KURZ, Robert. As leituras de
Marx no século XXI. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz97.htm>. Acesso em: 22
mai. 2010.
JAMESON,
Fredric. Pós-Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São
Paulo, Ed. Ática: 1997.
DEBORD,
Guy. A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a sociedade
do espetáculo. Rio de Janeiro, Ed. Contraponto: 1998.
HENRIQUES,
Júlio (Org.) Internacional Situacionista – Antologia. Lisboa:
Edições Antígona: 1997.
VANEIGEM,
Raoul. A Arte de Viver para as Novas Gerações. São Paulo, Ed.
Conrad: 2002.
JAPPE,
Anselm, Guy Debord. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes: 1999.
[1] Pós-modernidade
aqui não deve ser compreendida estritamente como período histórico ou tendência
cultural, mas como condição sócio-histórica, e pós-moderno, quem defende ou se
alinha a esta condição, sendo até aqueles que combatem a fragmentação do
pensamento.

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