Esse trabalho pretende fazer (re)considerações acerca da mimese[1] no conto “Retrato de cavalo”, de Guimarães Rosa do seu último livro de contos, Tutameia (1967). O objetivo é trazer à tona a relação mimética postulada por Aristóteles que se confunde com o conceito esclarecido de representação no período moderno. A partir da compreensão de representação como fragmento da relação com a realidade (mimese), pretendemos analisar como o autor/narrador do texto faz a representação do cavalo do Bio e do retrato que tiraram dele. Tentamos estabelecer uma relação entre o retrato do cavalo e o próprio ato de escrever.
Segundo Lopes (2006), a mimesis que até o século XX é entendida apenas como representação não será compreendida então como cópia pura e simples da vida, mas o artista aparece como força criadora do trabalho de arte. Lopes (2006) considera que
a mimesis artística e a sua relação com a natureza na qual aquela não é tomada somente como uma simples imitação do aspecto fenomenal dos seres, essa outra forma estabelece uma equivalência de identidades entre a capacidade geradora da natureza e a energia inventiva do artista.
O retrato não seria apenas a representação (im)perfeita do cavalo, mas traria, sob a o tecido textual, uma tensão que dá pista da recriação propulsora da linguagem: o poder do artista de (re)criar e (in)dispor representações (e representação da representação). É nessa perspectiva de inverter a verdade pelo movimento do falso que Guimarães Rosa expõe a vitalidade da Poiesis.
O processo de permanente re-criação da linguagem em Rosa evidencia o caráter eterno do signo. O não dizer, dizendo; não mostrar, mostrando; a epígrafe que inicia o texto, na certeza que ele recapitulará, demonstra esta virtude da linguagem. A relação entre o real e o falso é construída pela subversão da linguagem, pela enunciação criativa, pela possibilidade de dizer o inefável na perspectiva de fazer o impossível.
A mimese, representada pela tragédia (certeza da morte) e pela comédia (retrato de cavalo), confunde o narrador com o ponto de vista de Bio.
Segundo Carlos Ceia (2010), mimese,
Do gr. mímesis, “imitação” (imitatio, em latim), designa a acção ou faculdade de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, O fenómeno não é um exclusivo do processo artístico, pois toda actividade humana inclui procedimentos miméticos como a dança, a aprendizagem de línguas, os rituais religiosos, a prática desportiva, o domínio das novas tecnologias, etc.
O texto expõe o estranhamento de Bio com o retrato e os sentimentos que este estranhamento causa: ódio, desconfiança, etc. Se a mimese é a cópia fiel da natureza, o retrato retrata isso muito bem. Percebe-se que a relação mimética, no plano do texto, o retrato, como elemento principal da narrativa, constitui a tensão, ou seja, em volta do retrato, imanente ao retrato, vem todo o conflito e uma reflexão sobre tutameia. Esta relação potencializada pelo viés da linguagem e pela roupagem mimética aparece disposto como pano de fundo do texto na condição de tutameia.
Guimarães recupera a importância (sem muita importância aparente) da realidade exterior como referente para a tessitura do signo que se revela pela linguagem. Quando Bio tenta compreender, aliás, tenta estabelecer uma relação com o retrato, ele busca no retrato uma compreensão para sua relação com o cavalo. É aqui que o diálogo entre o real e o falso ganha sua concretude. “Uma outra sombra, em falsas claridades?” (ROSA, 1976, p. 131)[2] nos remete à ideia de que a relação mediada entre o retrato e a realidade que ele representa constitui-se como cópia, ou seja, numa relação realmente invertida, o verdadeiro é o movimento do falso: “ ...mas que, reproduzido destarte, fornecia visão vã, virava o trem alheio, difugido” (p. 130).
A foto faz mal ao cavalo e, mais ainda, faz mal ao próprio Bio: “Encismava-se: feito alguma coisa houvessem tomado ao animal, subtraindo-lhe uma virtude; o que trazia dano, pior que mau-olhado” (p. 130). O retrato é algo como a negação do cavalo, o que lhe tira uma virtude, o que prenuncia a morte, afinal. Bio vê-se diante de um dilema que desafia sua única vaidade: a posse do cavalo. E nesse dilema já não sabe qual é mais “vistoso” (p. 130) se o quadro ou seu cavalo.
O cavalo de Bio era tão estimado pelo dono que não era utilizado nem como montaria: “Ia a pé; para giro vulgar ou de mister, não o selava...” (p. 130). Aqui, o cavalo assume uma importância toda especial para seu dono, pois a relação entre eles não era apenas a de um homem e seu cavalo. Parece ser muito mais que isso. O cavalo não seria para o usufruto, mas para “usuflor” (p. 131). E esse cavalo era seu, o retrato não, embora lá estivesse uma representação quase que maldita do seu “cujudo” (p.130). Além dessa angústia, seu patrão, o Iô Wi, provocava-o dizendo que o cavalo do retrato (representação) era mais belo do que o cavalo real. Outra vez se coloca, aqui, a separação entre arte e vida, a obra de arte (retrato) é mais belo do que o próprio cavalo.
Para confrontar sua angústia de não possuir o cavalo do retrato, Bio transforma a sua relação com o cavalo: “Tinha era de nele montar, pelo comum preceito, uso, sem escrúpulo nem o remorso. Montava-o – e dele só assim se posseava.” (p. 131, grifos nossos). A relação passa de “usuflor” para usufruto, pois, apenas assim, Bio poderá sentir a posse de seu cavalo novamente.
Depois de usufruir de seu cavalo em um passeio, Bio resolve ir ao Iô Wi para, enfim, resolver logo aquele problema: “Desdenhava falsejos e retratos. Agouros! devia abolir aquele, destruído em os setecentos pedaços. Só depois sossegasse.” (p. 132). Bio sentia que aquele retrato – que ao tentar representar seu cavalo de forma perfeita, distanciava-se da vida (cavalo) – prenunciava alguma tragédia, era um “agouro”, por isso tinha que destruí-lo. Porém, ao chegar à casa do Iô Wi, encontra-o triste. A moça “desdeixara-o” (p. 132). Para Bio, ela não poderia ter fugido assim, de todo. Alguma coisa ficara, mesmo que na representação da moça do retrato – ora, não era o retrato (arte) a tentativa de cópia perfeita da moça (vida)?
Ao fim, o agouro começa a se realizar, o cavalo de Bio encontra-se doente. Desesperadamente, Bio tenta reanimá-lo e chega a uma conclusão que, talvez, seja a chave para a compreensão da ideia de representação, segundo Guimarães Rosa: “Sofrimento e sede... Isto se grava em retratos?” (p. 133). E o cavalo-real ia se esvaindo, “... mirava-o, agradecido, nos olhos as amizades da noite.” (p. 133); “Cavalo infrene, que corria, como uma cachoeira. Não estava ali mais.” (p. 133). O retrato continuava, aquele cavalo do retrato não morrera, permanecera vivo, mas Bio recusou o retrato. A moça-real e o cavalo-real, de certa forma, morreram. A representação dos dois, não: “Apesar bem de belo, perfeito em forma de semelhanças, cavalo tão cidadão, aquilo não podia satisfazer o espírito, como a riqueza esfria amores, permanecido em estado de bicho.” (p.133). Já não valia mais ter junto de si aquele retrato, pois eles (cavalo e moça) já não tinham correspondência no mundo-real. Dissociaram-se, afinal, da vida.
E a “epígrafe” final que, inclusive, lança luz, ainda, sobre a potência da linguagem mimética percebida no texto:
Era verdade de-noite,
Era verdade de-dia.
Mentira, porque eu sofria.
RECAPÍTULO. (p. 133)
Segundo Sodré (1982), “a originalidade que define uma literatura como o ‘instrumento de expressão, que é seu veículo’, não surge por acaso, senão no período próprio, quando as condições sociais permitem”. A compreensão de mimese como imitação tal qual da natureza não se restringe apenas ao fazer artístico, mas repercute também na relação social consolidada. A imitatio é uma aproximação que a arte faz com a vida, bem como a compreensão que – no caso a literatura – é feita de uma época. Com a modernidade, o advento das especialidades, percebe-se um distanciamento entre artista e realidade. O dito pelo não dito se encontra escondido no percurso entre imanência e transcendência. Neste ínterim, encontra-se (recupera-se) o vínculo com o que foi perdido na insistente estrutura do homem por uma verdade metafísica: o que não cabe à literatura empreender, nem a literariedade evidenciar. A gênese da literatura sempre foi a relação livre com o imprevisto, com o quiprocó, fazendo de tutameia, coisas sublimes.
Notas:
[2] A partir de agora as referências do livro Tutameia serão indicadas apenas com o número da página entre parênteses.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO. A poética clássica. São Paulo. Cultrix, 1990.
BYLAARDT, Cid Ottoni. “Conversando aos infinitosum retrato de cavalo”. Disponível em http://cidobyl.blogspot.com/2009/08/conversando-aos-infinitos-um-retrato-de.html
CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literário. Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/mimesis.htm
PORTELLA, Eduardo. Fundamento da investigação literária. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.
ROSA, Guimarães. Tutameia. 8º. Ed. Rio de janeiro. Nova Fronteira., 2001.
SABOIA, Alice Maria Teixeira de. “A representação da representação”. Disponível em http://www.ufmt.br/revista/arquivo/rev11/representacoes.html
SODRÉ, Nélson Werneck. História da Literatura Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1982.

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