Por: Ivo Xavier
Sexta-feira; esperava ansioso - mesmo longe de casa - um punhado de versos, de cinco mulheres. Mas eles não chegaram e o fim de semana acabou sendo poeticamente absurdo, entre praia e legislação.
Segunda-feira, consulto o monitoramento dos correios. Por onde estará Por cada uma? Entre Ponta Negra/Natal- RN e Antônio Bezerra/Fortaleza-CE, percursos poéticos. Finalmente o livro faz seu percurso – talvez o único inútil, pois envelopado – até seu destino.
Chego a casa durante o crepúsculo; não pergunto sobre a encomenda e, de repente, deparo-me com ele sobre os demais livros que me acompanham habitualmente. Perto da encomenda, Mário Quintana, Drummond e Oswald de Andrade já tinham dado boas vindas às meninas e seus versos, como cães que farejam o cio. Vejo a remetente e confirmo a chegada da boa nova. Procuro sentir cheiro adverso como quem procura na lembrança o perfume moreno de encontros desencontrados na memória. Poderia ter pedido uma gota de perfume, mas minha veia poética não está tão atenta assim.
Rapidamente, desembrulho-o. A obra está envolta de um papel alvo como que um manto que protege de qualquer agente nocivo. Antes de sacar o papel branco, a cor do livro transpassa com a força que o vermelho do amor, da guerra, do crepúsculo e da aurora significa. Tenho um presságio diferente da Jandaia de Iracema: hoje vou dormir com cinco mulheres. Hei de satisfazer todas, Por cada uma (da editora UNA), mergulhando em seus versos.
A capa, obra do artista renascentista alemão de Nuremberg Albrecht Dürer, mostra o banho das mulheres (The woman´s bath). Depois de obrigado pela igreja a guardar o corpo pelo pensamento medievo dominante, o homem renascentista resgata a cultura helênica e romana, principalmente em suas obras, dando ao corpo um lugar central na expressão. Na obra de capa, as mulheres grávidas da renascença sugeriram-me metáfora do parto de versos Por cada uma.
Não li as orelhas de início e fui ao encontro de Adélia, Iara, Isabella, Letícia e Marina. Esta, tive a honra de conhecer pelo meio do caminho depois de driblar uma pedra. A dedicatória me chamou atenção pelo seu duplo:
Para Ivo,
A posia
resPIRA...
Com Carinho,
Marina
(arabesco)
Jan/2012
E fui pirar na res poética que acabara de chegar-me. Inspirado pelas cinco tecelãs, fui tecendo os mosaico de imagens e versos que ora une, ora nos escapa pela riqueza de significados. A possibilidade de perceber mais possibilidade acabou sendo uma busca pueril e alegre pelo universo feminino que ora me estava entregue.
Parei um pouco e pensei: “Quero comentar o livro. Vou escrever um ensaio”. Pouco escrevi ensaios durante o período acadêmico. Os poucos que tentei ora versavam sobre romances, ora sobre teoria da literatura. Quanto à poesia, sempre me foi árduo tentar esquadrinhar qualquer poética em determinações teóricas ou semânticas, mesmo às mais abertas.
Aristóteles, filósofo do período decadente da Grécia antiga, também cogitou a dificuldade de (de)nominar a arte poética ou da palavra.
“A arte que se utiliza apenas de palavras, sem ritmo ou metrificadas, estas seja com variedades de metros combinados, seja usando uma só espécie de metro, até hoje não recebeu um nome.” (Aristóteles, 1997)
E isso se confirma assim que me encontro com Adélia, que acaba por partilhar da profundidade que é a arte de sentir em versos: “Não queria ser assim / ter esse legado de / labirintos profundos”. Esse é o convite mais ilustre da poeta: vasculhar a profundeza, o íntimo humano, sem se anula involuntariamente, sem coisificar a visão: “as coisas / muito claras / ´nos´ noturnem” 1 (BARROS, ...).
A teoria literária ou teoria da literatura buscou se livrar das análises sob influência do biográfismo acerca dos textos literários quando descobriu que o texto é constructo de seu tempo e o autor o porta-voz deste percurso histórico, ainda no final do século XIX. Sinto-me privilegiado, então, por desconhecer as poetas, salvo a Marina Morena. Mesmo assim, nunca conseguiu-se fugir da autoria a teoria, talvez por imposição da ciência e do seu olhar frio que sempre acaba captando, apenas o automatismo do sujeito.
Em Adélia, a vontade de viver é intensa, vontade de querer "só mais quatro mil anos", não só para ela, mas para com e no outro, para duas embora muitas em inúmeras fases das luas. “Sim, isso é a vida.”, mesmo procurando o que dizer “em casas de palha em meio a tempestades”. Tal vontade não permite receios, principalmente no amor. Do mundo e de Dionísio são suas incertezas para além de si, para além de sua geração. Uma dúvida fértil, tal como terra molhada pela chuva. Ao sol, seca. Assim, Adélia quer deixar pistas do seu rastro, quando das suas “letras / que insistem / em ser palavras”. “Nos desejos e realidade / tenta fugir / Despercebida”.
Mas Adélia não pode fugir, e não quer fugir, e precisa fugir em pedaços, em fragmentos que a faz, “por simples brincadeira / feliz e inteira”, unidade. Inteira e só. Como eu queria pelo menos tentar “sair / em lapsos na madrugada”. Adélia, eu também não gozo sem mar!
Iara – parece-me – já transcendia antes dos trinta. Agora a poesia queima-lhe naturalmente (opinião de leitor). O sonho verdejante das operárias não é o mesmo sonho operário. Até o vermelho das operárias não é o vermelho operário de outrora. Iara sabe o segredo no fundo do formigueiro; Iara é uma flor!
Iara, como o próprio nome sugere, é natureza. Pelo grande poder que sua observação tem de transformar o alvo de sua visão em versos, Iara me lembra Arquimedes: “Dê-me um ponto de apoio, e moverei o mundo”. E assim, move-se noturna: “pedras sonoras me orientam aos céus”.
“Iara é a sereia encantada de nossos índios, aquela que em noites de luar, vive a cantar nas margens dos rios e onde mora”2. Em Lúdica, temos nossa Iara poeta que “escreve... alegre e descansa sobre o verbo e as flores”. O banho de Iara não é aquele de Dürer... é um banho quente, de convulsar “água interior”... autovidração, salvação do abismo. E por aí Iara se transmuta, entre cigarra e formiga que formiga na poesia “uma flor no lugar do coração”.
Em Isabella, descobri um rio de significação cujas margens são desfeitas e levadas pela correnteza de sua poética: emancipação da forma.
Quando queimei as pontes,
O sagrado se espalhou como pólem.
O sagrado se espalhou como pólem.
Assim como tudo que era sólido se desmancha no ar, a poeta, “altiva, nada quis reter".
No poema de abertura, Isabella sugere o tênue laço que há entre o homem e o sagrado. A sugestão é que não há criatura nesta relação, mas criadores; um do outro. A palavra, como portadora de “mil faces secretas sobre a face neutra”, permite re(a)ver o contato com o sagrado, mesmo em cólera: “ Deus, por onde me espia / Para eu ultrapassar essa fresta?”.
No ínterim da leitura de sua poética, percebo que Isabella arrasta (convida) toda a margem(forma) a descer o rio(poesia), permitindo ao leitor (se) refazer (n)a leitura: “As palavras se desviam em hiatos”. O obscuro, aqui, se esconde sob o símbolo e a poeta, no quarto que se expande, em vontades secretas; o abismo é uma proteção. Proteção criada pelo sujeito ou pelo eu lírico “de mãos ásperas que colhe dolorosas astúcias de salvação”. Isabella sabe ouvir, “o inefável perpetuando laços / É a própria fresta / Que digo não ver.”. O inefável é ouvir-se.
Letícia não se rende à imposição da imagem e sabe transformá-la em imaginação. Que olhar é este que faz a imagem desfocar sua finalidade de ser indesfocável? Que divisão de vida é esta que se junta nas separações (e arremata o poema)? A poesia, como a loucura, é uma tentativa de reconstrução do que se perdeu. Não que se perdeu por aí, mas se perdeu no aparato sensorial dos sentidos que nem tudo sente. Vejo na seção da vida pessoas que são muitas, mas apenas pessoas, pois “Toda rejeição é dúvida confirmada”.
Na Letícia-mulher não sei como é que é! Mas na Letícia poeta “as idéias se aperfeiçoam. O sentido das palavras também. ...serve-se das suas expressões...”.
Ao passar dois dias da escrita do parágrafo anterior, sinto que não dediquei o suficiente a poética de Torres. Depois deste intervalo, volto a sua poesia inicial e na releitura mais atenta – como quem busca sentir sutilezas metafísicas – vejo-me comportado na seção de sua vida dividida. Essa será o reflexo dos meus óculos desconhecidos “como se fosse primeira e única conversa séria”?
Indo assim como vim, vindo assim como nada, mesmo sem tristeza afiada, mas com a percepção cortada “com os cactos que não acontecem / fazendo dos pedaços, palavras”, separo-me de Letícia: “A vida se junta nas separações”.
Marina Rabelo, cujo sentimento do mundo perpassa pelo sentimento da palavra, possui uma hermenêutica encantatória tal canto da Iara. Em seus dois poemas iniciais, o convite para experimentar tal sentimento está ao alcance do leitor mais atento ao infinito de perspectiva da palavra.
Remontando ao conceito clássico de poiesis (ποιέω), hoje atualizado pelos biólogos da década de 70 como autopoiesis (a capacidade do seres vivos de produzirem a si próprios), Marina imprime em seu verbo o corpo, o sentimento da palavra, distanciando seu “discurso” de qualquer possibilidade mecânica do verso3 .
Tal inferência fica mais clara no poema “a vida secreta das palavras”. Quando o sentimento do mundo, perpassando pelo sentimento da palavra, toca-lhe o lábio, o fogo purifica. “Sob o asfalto, a praia". Acabo de engolir os segredos da onda gigante para transformá-lo em gás metano4 .
A senhorita Rabelo percebe a sílaba das palavras como possibilidade de sentido, mesmo quando nu vens invade minha fortaleza de sol. Neste poema, tendo como epígrafe o querido Múcio Góes, poeta cuja poética transborda de quintessência, o sentimento da palavra vem e impõe-se, “desenhando nuvens” no céu da poesia.
As nuvens da poeta não são as nuvens da realidade. As nuvens da poeta sombreiam o céu. Em Marina, “A poesia aflige” e encarna; porém, em interminável contrassenso, “gosta de colecionar silêncios / eles sempre tem algo a dizer”.
E aqui, Por cada uma cria-se o todo, como arabesco em voluta, em busca de contentamento.
Notas
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1 - Além de citar, acabo parafraseando o poema de Manuel de Barros.
2 - Acessado em 31/01/2012 em http://odemutaloia.blogspot.com/2010/04/ogum-iara.html
3 - Tal característica mecânica é facilmente encontrada na herança moderna das correntes literárias do período renascentista até o pós-fordismo (organização social básica mecânica), com exceção do Barroco e de algumas correntes ditas pré modernas. Por muito tempo, a poética esteve, de certa forma, escrava da forma.
4 - Aqui, procuro inverter o sentimento do mundo da poeta: da angústia assimilada à comicidade sem finalidade. Tal estratégia foi inicialmente poetizada por Conde de Lautréamon, contemporâneo de Vitor Hugo, porém detentor de uma estética muito a frente do seu tempo. O mesmo recurso foi aproveitado pelos letristas como desvio de uma situação opressiva da forma, conhecido e deteriorado mais tarde pela lingüística de texto e pelo mercado da publicidade (détournement)
Bibliografia
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ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO. A poética clássica. São Paulo. Cultrix, 1990.
CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literário. Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/mimesis.htm
PORTELLA, Eduardo. Fundamento da investigação literária. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.
SABOIA, Alice Maria Teixeira de. “A representação da representação”. Disponível em http://www.ufmt.br/revista/arquivo/rev11/representacoes.html
SODRÉ, Nélson Werneck. História da Literatura Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1982.
