Pesquisar este blog

Poiesis

Poiesis

terça-feira, 4 de setembro de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE LEITE DERRAMADO DE CHICO BUARQUE E A PÓS-MODERNIDADE




 José Ivo dos Santos Xavier


O presente ensaio busca fazer uma exposição (reflexão) sobre a escrita buarqueana, especialmente no seu quarto romance, intitulado Leite derramado(2009). Antes, pretendo fazendo uma pequena análise do momento sócio-histórico que permeia a memória do velho Eulálio d'Assumpção, aristocrata arruinado de Copacabana. Levando em conta o fluxo da escrita, em que seu ato ocorre ao mesmo tempo em que o velho rememora momentos de sua vida (ao mesmo tempo em que narra), pretendo evidenciar o caráter esquizofrênico do eu que narra, na busca de manter uma linearidade, uma sucessão coerente de idéias e fatos, na busca de se construir uma história. Esquizofrenia aqui se entenderá como movimento do pensamento que foge ao esquadro, que está perturbado; movimento para fora. Antes, um pouco de lucidez teórica para situar a escrita de Leite derramado como um movimento para as extremidades do texto, como quem simula o pensamento pós-modernos. 
No texto de Chico Buarque, gostaria de evidenciar como a escrita se utiliza da esquizofrenia para uma suposta reflexão sobre a memória narrada. Segundo, o Wikipedia, 

A esquizofrenia (do grego σχιζοφρενία; σχίζειν, "dividir"; e φρήν, "phren", "phrenés", no antigo grego, parte do corpo identificada por fazer a ligação entre o corpo e a alma, literalmente significa "diafragma") é um transtorno psíquico severo que se caracteriza classicamente pelos seguintes sintomas: alterações do pensamento, alucinações (visuais, cinestésicas, e sobretudo auditivas),delírios e alterações no contato com a realidade.

Eulálio d'Assumpção, aristocrata arruinado de Copacabana, na cama hospitalar da pobre enfermaria em que o internaram depois de uma fratura grave, usa-se de uma interlocutora em que o texto não nos permite identificar, mas ora se percebe que é a enfermeira, ora sua filha Eulália. Completando 100 anos, muito debilitado, o frágil ancião constrói seu monólogo dialógico em alguns capítulos de forma esquizofrênica, em extensas memórias de sua Matilde, antiga esposa para sempre amada, desaparecida de sua vida quando se achava na flor moreníssima dos seus 17 anos. Nunca ouvimos a voz do interlocutor que ouve e anota as histórias de Eulálio, mas, logo na primeira página, ele promete se casar com ela na tal fazenda da sua feliz infância. A escrita que se constrói com memórias fragmentadas, monta o romance de dentro para fora, esquizofrenicamente.
Como montar o pensamento pós-moderno para empreendermos um passeio pela memória de Eulálio, não de como ela está estruturada, mas como ela não se consegue estruturar?
Não é tarefa fácil demarcar o pensamento, o sentimento e a visão de mundo de uma época. Principalmente quando se trata de um longo período histórico. Tal empreendimento envolve o debruçar-se sobre diferentes contextos: social, econômico, político, cultural etc. No que tange à Literatura, podemos perceber que na contemporaneidade, mais especificamente no século XXI, lidar com o texto que se publica como literário exige do crítico uma maior gama de processos de inferências, na busca de uma unidade de sentido.
Poucos são os teóricos que conseguem dar conta de uma tão vasta gama de inferências, relacioná-las e extrair delas uma análise satisfatória da realidade da obra literária sem confundi-la com a obra literária que expressa uma realidade. Mesmo após passada uma época, as conclusões acerca de seu conteúdo e significado ainda se processam e reviravoltas analíticas podem ocorrer. Mas, qualquer análise que abandone a perspectiva da totalidade histórica corre o risco de cair no individualismo alienado, ainda mais se tratando de uma obra que ocorre na época vigente. E se esta época for permeada de fugas pelas extremidades, quase sem direção, o retorno à unidade se faz quase impossível, revelando o distúrbio na relação mimética que envolve o crítico, o leitor e o autor, todos na esfera da arte em busca de contentamento, emoção ou em se situar sócio-historicamente.
A modernidade, além da ruptura com o conjunto de valores e crenças da época precedente, foi o período marcado pela busca dessa totalidade, de uma essencialidade das coisas. Pautado no ideário iluminista, foi a crença na emancipação humana, na construção de um novo mundo baseada na razão, na idéia de progresso, e que norteou toda a tradição dos movimentos da luta de classes subseqüentes. Chico Buarque cita muitas vezes esta época, de forma insuficiente para confortar esta análise da modernidade, seja na relação com Matilde ou com o pai dela, político liberal.
Com os abalos sofridos no século XX, sobretudo pelas guerras, o projeto iluminista, que já vinha sendo questionado, não apenas foi desacreditado e abandonado, como foi identificado com a lógica subjacente à opressão reinante. O niilismo daí decorrente abriu caminho para uma tendência que iria colonizar as diferentes esferas da vida. Da arte à ciência, o pensamento pós-moderno passou a ocupar cada vez mais as preocupações do período que se inicia, em algum lugar, entre o final dos anos 60 e inícios dos anos 70 (Harvey, 1992).
O final dos anos 60 foi o período de contestação social em que, ainda, se pôde postular e vislumbrar uma transformação de grande alcance e profundidade. A arte e a produção cultural, que tiveram um papel ativo nos eventos deste período, não haviam sido completamente cooptadas pelo mercado, muito embora este processo já estivesse em curso, e sua efetivação, coincidido com a tendência hegemônica do pensamento pós-moderno. David Harvey menciona as conseqüências do fracasso da insurreição de 1968: 

Na filosofia, a mescla de um pragmatismo americano revivido com a onda pós-marxista e pós-estruturalista que abalou Paris depois de 1968 produziu o que Berstein (1985, 25) chama de “raiva do humanismo e do legado iluminista”. Isso desembocou numa vigorosa denúncia da razão abstrata e numa profunda aversão a todo projeto que buscasse a emancipação humana universal pela mobilização das forças da tecnologia, da ciência e da razão (Harvey, 1992. p. 46).

Como uma ressaca moral, após a embriaguês com o projeto iluminista, agora numa crise profunda, o que se segue, na marcha pós-moderna pelo mundo, é a desconfiança e oposição a qualquer pretensão de essencialidade, totalidade e grande teoria. O retraído pensamento pós-moderno, na corrente das mudanças, se volta para o que é efêmero e fragmentário, descontínuo, caótico e indeterminado. Concentra sua atenção nos grupos minoritários, na diferença e na idéia de mundos paralelos, de outros mundos. Adota o discurso da alteridade e pluralismo como contraposição legitimadora de sua própria condição alienada, fragmentada, de resignação ao mercado, e de impotência frente a qualquer perspectiva de transformação mais abrangente do mundo. 

[...] Encontramos autores Como Foucault e Lyotard atacando explicitamente qualquer noção de que possa haver uma metalinguagem, uma metanarrativa ou uma metateoria mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas ou representadas (Harvey, 1992. p. 49).

Ao se fixar em uma fragmentação seriada do presente, sem relação temporal que possa conectar os diferentes momentos da experiência vivida, a pós-modernidade[1] sofre uma perda da temporalidade e qualquer perspectiva de continuidade histórica. Vivendo num presente continuum e multifacetado, com a justaposição e a superposição de momentos presentes, a pós-modernidade flutua na superfície de um espaço-tempo comprimido.  A perda de profundidade, da capacidade enunciativa, de sentido, e a fixação no impacto instantâneo são inerentes a esta condição.
O pensamento pós-moderno é também o abandono resignado de qualquer possibilidade crítica, já que sua postura não autoriza afirmar a menor verdade acerca do mundo.  Os julgamentos críticos e estéticos tendem a se concentrar na superficialidade e na forma, não sendo possível tocar o conteúdo, que, aliás, é indiferenciado da forma, na medida em que toda idéia essencialista é rejeitada pelo pensamento pós-moderno. Por já não ter o que dizer é que a pós-modernidade trata forma e conteúdo como idênticos, e afirmações do tipo: “Forma gera conteúdo”, lhes são tão caras.
Imerso num relativismo absoluto, tal pensamento ao mesmo tempo em que não pode afirmar nada categoricamente, lança mão de todos os recursos históricos e teóricos para sua legitimidade.  Por meio da pilhagem e da combinação arbitraria dos mais diferentes elementos históricos, teóricos e culturais, monta impudicamente o mosaico de seus fundamentos sem qualquer coerência.

A política do avestruz de um pensamento reduzido e desarmado de modo tão espontâneo menospreza o fato de não ser possível fazer uma separação entre a problemática das chamadas grande teorias e grandes conceitos, e o seu objeto social real. A pretensão de querer cingir o todo é provocada sobremaneira através da realidade social. Em sua existência real, o todo negativo do capitalismo não pára de agir, simplesmente porque é ignorado, conceitualmente e porque não queremos mais olhar nesta direção: “a totalidade não os esquece”, como bem escarneceu o inglês Terry Eagleton, teórico da literatura (Kurz, 2001).

A comunicação e a linguagem são campos privilegiados para essa indeterminação, confusão e dissolução consentida do sujeito em uma impessoalidade que não se pode deixar de relacionar ao movimento cego das categorias capitalistas. Como ressalta David Harvey, citando Jameson: “A alienação do sujeito é deslocada pela fragmentação do sujeito”. Se a Literatura não é um saber, mas uma reunião deles, como mencionou em sala o professor Cid Ottony, citando algum semioticista, é posssível que a literatura resista ao vazio projetado da pós-modernidade sobre o pensamento por meio da unidade de saberes. A meu ver, Leite derramado segue o caminho da regra ao propor constituir-se uma obra literária por meio de fragmentos mnemônicos, que muitas vezes se repetem ao longo da história, afirmando o movimento para as extremidades, para fora do texto, ao vazio. Repete-se por estilo ou por não se conseguir criar um novo?
A relação entre significado e significante assume uma grande flexibilidade numa interpretação ao estilo pós-moderno. No texto de Buarque, a conexão fragmentada e os entrelaçamentos memoriáveis assumem uma importância tal, que se torna mais relevante que o texto em si, assumindo vida própria. Para os pós-modernos, se o sentido do que queremos dizer, necessariamente nos escapa, não vale a pena deter-se no significado, voltando-se ao significante. E nesse movimento, se vai do conteúdo à forma, da essência à aparência, do fundo à superfície, da densidade moderna ao vazio pós-moderno.
Esta ênfase na relação entre as partes, em detrimento do texto em si, implica na redução do papel autoral, numa maior democracia e participação dos consumidores culturais. Este passa a assumir um papel destacado na produção de sentido da obra, que passou a ser a chamada de “obra aberta”. O que antes se centrava na obra, passa ao “processo”, enfatiza a “participação”, manifesta-se no reppening e consolida-se na performance. Mas a democracia participativa, aqui celebrada, resvala para a perda de comunicação e cai na futilidade do mercado de massa. David Harvey toca na ferida pós-moderna ao formular a seguinte questão:

Mas se, como insistem os pós-modernistas, não podemos aspirar a nenhuma representação unificada do mundo, nem retratá-la com uma totalidade cheia de conexões e diferenciações, em vez de fragmentos em perpétua mudança, como poderíamos aspirar a agir coerentemente diante do mundo? (Harvey, 1992 p. 55). 

Para concluir, observar a escrita buarqueana em Leite derramado como algo que nega a possibilidade de lembrar, de memorar, memorando fragmentos em um tempo-presente já sem o presente-tempo é afirmar que o sentido se perdeu na pós-modernidade enquanto diferença. A memória se coloca como representação de uma história vivida, mas então abstratamente. Chico é um escritor que se utiliza do leitor para construir um sentido para sua obra. Em leite derramado, apesar de uma narrativa cansativa, com algumas sacadas engraçadas, o autor apela para que o leitor se coloque como interlocutor, mesmo que o sentido, a sucessão do que é contado fuja; o leitor é quem toma nota das memórias do velho Eulálio dÁssumpção.uma presente jefragmentos de exa buarqueana como algo que nega a possibilidade de lembrar, de memorar, memorando fragmentos de

-----------------------------------------------------------------------------
Referências bibliográficas

BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo. Companhia das Letras, 2009.
HARVEY, David. A Condição Pós-ModernaUma Pesquisa Sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo, Ed. Loyola: 1992.
KURZ, Robert. As leituras de Marx no século XXI. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz97.htm>. Acesso em: 22 mai. 2010.

JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São
Paulo, Ed. Ática: 1997.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Ed. Contraponto: 1998.

HENRIQUES, Júlio (Org.) Internacional SituacionistaAntologia. Lisboa: Edições Antígona: 1997.
VANEIGEM, Raoul. A Arte de Viver para as Novas Gerações. São Paulo, Ed. Conrad: 2002.
JAPPE, Anselm, Guy Debord. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes: 1999.

             








[1] Pós-modernidade aqui não deve ser compreendida estritamente como período histórico ou tendência cultural, mas como condição sócio-histórica, e pós-moderno, quem defende ou se alinha a esta condição, sendo até aqueles que combatem a fragmentação do pensamento.